Não conheço mais ninguém, ninguém me conhece e tem uma certa liberdade nisso que é reconfortante. Queria mudar de nome, apagar o que eu fiz, controlar minhas expressões faciais exageradas, minha fala mole por causa do aparelho ortodôntico tardio, meus gestos velozes e tumultuados.
Grande medo que tenho na vida é de ter passado incólume pelas oportunidades que tive, pela universidade, pelos livros. Meu maior medo é da minha própria ignorância.
Me orgulhava de nunca ter sido demitida de nenhum emprego por onde passei. Não faz a menor diferença agora. Trabalho é o ganha-pão, o paga-teto, o redentor de boletos. Escrever é o que eu fazia para viver - para estar, ser viva. É onde eu sou eu, era.
Quando meu primeiro livro foi publicado, anos atrás, alguns gostaram e escreveram a respeito. Viajei com o livro, falei em palestras e mesas (mal; figura chucra).
O segundo romance que comecei a escrever não foi acompanhado pelo editor enquanto eu tentava fazer daquilo um livro. A editora tinha comprado o texto, pagou até um adiantado. Mas o encarregado de editar, sem dizer muito - disse que não gostava, não gostava, não gostava -, não quis. Fui ignorante, me pus à caça de trabalho me sentindo e agindo burramente. Sozinha numa madrugada no Jobi, no Leblon - bairro longe de onde eu morava quinze anos atrás (longe de onde moro hoje ), - tive uma última conversa pelo celular com o cabeça da editora, chefe do primeiro desertor da história mal acabada: não ia ter livro mesmo, não aquele. Quis esquecer.
“Antigamente, se alguém tivesse um segredo que não quisesse partilhar, subiam uma montanha, procuravam uma árvore, abriam um buraco nela e sussurravam o segredo para dentro do buraco. Por fim, cobriam-o de lama e lá deixavam o segredo para sempre” - “Amor à Flor da Pele”, Wong Kar-Wai, 2000)
Uns meses e recebi o telefonema da editora de um jornal de grande circulação, que me ofereceu um emprego de repórter. Aceitei e pedi para ir embora um ano depois, odiava redação, nunca mais voltei. Nunca fui demitida e não faz diferença.
Eu ainda escrevi um conto e outro que foram publicados em antologias esporadicamente, nos vãos entre os anos. Nenhuma editora quis o livro largado pela editora grande. Eu queria mudar de nome - já, ainda.
Um tempo e o telefone tocou novamente. Era uma autora de telenovelas que havia lido meu primeiro romance e me ofereceu trabalho como roteirista. Aceitei e fui Uber da escrita por quinze anos. O Uber da escrita guia a história para onde quem paga quer.
O redentor de boletos pode ser qualquer outra coisa. Não pode? Pode?
Não peço, não prendo mais, não conheço ninguém, meu currículo é um borrão sem lattes. Volto a escrever como quem cochicha algo dentro de uma árvore, como o homem do filme, escrevo qualquer coisa, escrevo tudo. Ainda quero algo. Quero contar da seita, do abuso religioso, da menina que morreu por causa de um prego na Praça Onze em 1950, da história da minha família, silenciosa em fatos e ruidosa em disfarces, quero quebrar silêncios. Quero contar como é não ser, porque não fui .
Tenho medo é da minha ignorância. Eu queria estudar. Mas já viu que horas são?